ÀS ESCONDIDAS - Beatriz, 20 anos, e a menor L., 13 anos: machucados no corpo para materializar sentimentos como tristeza, vazio, angústia e raiva (Jefferson Coppola/VEJA)
“Sentia muita dor, muita solidão. Sempre guardei tudo isso comigo. Queria que essa sensação ruim fosse para outro lugar, então comecei a me cortar. A dor que eu sentia no corpo aliviava a dor que eu sentia na alma. Fiz isso durante dois anos. Queria acabar com aquele aperto no peito que não passava. Eu me trancava no quarto e começava a me machucar com uma lâmina. No início, fazia cortes nas pernas. Depois, passei para os braços, os pulsos. Sempre tive uma relação difícil com a minha mãe, e ela demorou a perceber que havia algo de errado. Descobriu quando viu uma toalha manchada de sangue que eu tinha esquecido jogada no chão. Já tentei parar com isso duas vezes e acabei tendo recaídas. Demorei a aceitar ajuda. Faço hoje sessões com uma psicóloga e um psiquiatra. Além disso, mandei desenhar uma tatuagem de uma flor no pulso esquerdo, para esconder a cicatriz e me ajudar a lembrar que eu preciso parar. Há dois meses não me corto.”
O desconcertante relato é de Beatriz Alves de Oliveira, de 20 anos, a garota da foto que abre esta reportagem. Consultórios médicos e escolas começaram a registrar casos parecidos nos últimos anos. Ainda não há estatísticas por aqui sobre o distúrbio, mas ele já chamou a atenção das autoridades. Em abril, o governo federal sancionou uma lei que estabelece que episódios do tipo precisam ser notificados aos conselhos tutelares e às autoridades sanitárias. A medida é fundamental para dimensionar o problema e criar políticas públicas para combatê-lo. “Ele sinaliza que há algo errado com a saúde dos jovens que precisa ser investigado”, diz o psiquiatra Rodrigo Ramos, diretor do Núcleo Paulista de Especialidades Médicas. No exterior, o fenômeno já foi quantificado por vários estudos. Um dos mais importantes, publicado pela revista científica The Lancet Psychiatry, analisou dados de 20 163 pessoas nos anos de 2000, 2007 e 2014. Nesse período, as ocorrências de automutilação quase triplicaram: passaram de 2,4% para 6,4%. O problema é mais frequente em adolescentes e adultos jovens, com o dobro de incidência entre as mulheres: uma em cada cinco se automutila.
O distúrbio é caracterizado por machucados intencionais, que não são feitos com o objetivo de tirar a própria vida. De acordo com relatos dos pacientes, a dor do corte materializa uma sensação ruim e abstrata — de vazio, tristeza, angústia ou raiva de si mesmo. Os machucados são superficiais e pequenos, em regiões que podem ser cobertas por roupas, como a parte interna dos braços e das coxas. Trata-se de um indício de que alguma coisa não vai bem na vida do adolescente — as possíveis causas incluem bullying, abuso (físico, emocional ou sexual) ou falta de suporte familiar. Pode ser também o sintoma de depressão, ansiedade ou transtorno alimentar. “Embora o ato nem sempre signifique tentativa de suicídio, jovens que se cortam repetidamente têm maior risco de tirar a própria vida”, alerta Guilherme Polanczyk, psiquiatra de crianças e adolescentes da Universidade de São Paulo.
A ciência ainda não desvendou totalmente o mecanismo pelo qual a automutilação ocorre. No cérebro, o comportamento de autolesão está conectado a alterações em áreas associadas ao processamento de dor e de recompensas. O corte libera endorfina, o mesmo hormônio que causa sensação de bem-estar na atividade física. O hormônio camufla, assim, a dor psíquica que atormenta. Com o tempo, a sensação de alívio diminui e há necessidade de aumentar a frequência para obter a sensação de euforia, como um vício. “Quanto antes começamos o tratamento, mais rápido os jovens melhoram”, diz Jackeline Giusti, psiquiatra e supervisora do ambulatório de Adolescentes Impulsivos do Hospital das Clínicas de São Paulo. O tratamento é feito com psicoterapia. Medicamentos são utilizados em caso de depressão e ansiedade.
A adolescência é uma fase caracterizada pelo abismo de comunicação entre pais e filhos. Mudanças de comportamento devem ser um alerta: isolamento, tristeza constante, distorção da imagem corporal e crises de raiva são alguns sinais. “Isso nunca deve ser considerado exagero, frescura ou imaturidade”, afirma Antônio Geraldo, presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina. As razões para o aumento dos casos não são claras. Uma das hipóteses é o comportamento por imitação. Os adolescentes vivem conectados, e nem sempre os pais conseguem controlar tudo o que é acessado. Na internet, há sites que incentivam a automutilação e grupos que ajudam a sair dela, como o Projeto Borboleta, que diz ao jovem para desenhar o inseto no pulso toda vez que a vontade de se machucar surgir. A cantora americana Demi Lovato revelou que recorria aos cortes desde os 11 anos para aliviar a ansiedade. A estudante do ensino fundamental L., de apenas 13 anos, também “sentia uma dor no peito que parecia uma facada”. Há um mês sem se cortar, ela percebeu que precisava ter procurado ajuda antes. “Não vale a pena guardar segredo. Só piora a dor. É preciso botar para fora, mesmo sabendo que a opinião das pessoas vai ser negativa.” Negativo mesmo é não procurar ajuda.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646
Postado por: Adelino
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